terça-feira, 7 de dezembro de 2010

VIH / SIDA (O País)

"Estar infectado com VIH não é sinónimo de morte"

Dulcelina Serrano é a directora do Instituto Nacional de Luta Contra a SIDA, a principal unidade de combate a esta doença em Angola. Após a publicação do relatório da ONU- SIDA esta semana, em que se fala numa redução dos casos, a especialista em Saúde Pública revela aqui o que tem sido feito para se travar a progressão da epidemia no país.


Como é que viu o novo relatório da ONUSIDA, apresentado esta semana, em que se fala numa redução na transmissão do vírus do VIH?
O que o relatório refere é que a incidência do VIH em África tem estado a diminuir, isto à custa da diminuição do número de novas infecções, mas que muito ainda há por fazer porque o acesso universal à prevenção, tratamento e apoio ainda não é efectivo na abrangência que se pretende. Portanto, este relatório dá-nos coragem para continuarmos a trabalhar, reforçando as estratégias que até hoje têm vindo a ser implementadas e ultrapassar os desafios que permanecem.

Qual é a situação da doença em Angola?
Em Angola, nos estudos que temos realizado – e o último foi no ano passado vê-se que temos uma prevalência estável, ela mantém-se nos 2. 1 por cento. Temos estado a registar um aumento de casos, mas pensamos nós à custa do maior acesso às unidades de saúde. Hoje temos um maior número de unidades de acesso para a população, daí que haja também um maior número de pessoas identificadas. Porém, dentro das estimativas que se prevêem, com base nos estudos que temos vindo a realizar, ainda não atingimos os valores estimados que nos reportam os relatórios.

Nós estimamos que Angola hoje tenha aproximadamente 200 mil pessoas vivendo com VIH e registamos até ao momento pouco mais de 65 mil pessoas nos nossos serviços. Destas 65 mil pessoas, aproximadamente 35 ou 36 mil estão em tratamento com anti-retrovirais. Significa que para que nós possamos chegar às estimativas que hoje os relatórios nos oferecem, precisamos de aumentar ainda mais o nosso trabalho de sensibilização, para que as populações conheçam as suas condições serológicas. Dos 30 mil identificados, significa pouco mais de 30 por cento das pessoas que nós devíamos identificar com base nas estimativas de cerca de 200 mil pessoas vivendo com VIH.

Quais são as províncias onde há maior incidência dos casos de infecção do vírus?
Estamos a identificar o maior número de casos nas províncias que fazem fronteira com países com elevado índice de prevalência, nas províncias cujas capitais têm grandes movimentos de pessoas, como são os casos do Huambo, Benguela, Lundas Norte e Sul, Cunene e Kuando-Kubango. A província do Bengo, que é um grande corredor viário, também tem apresentado o maior registo de pessoas infectadas com VIH.

Como é que está o acesso aos medicamentos?
O acesso aos medicamentos é gratuito, o Governo de Angola assumiu esse compromisso. E até agora, não só os medicamentos, como todos os meios necessários para o acompanhamento dos pacientes. O cidadão a partir do momento que é identificado positivo para o VIH já sai com o acompanhamento médico e todo o serviço é gratuito, desde a assistência médica a assistência medicamentosa. Implementamos no país cerca de 17 anti-retrovirais, entre os de primeira e os de segunda linha, mas não estão em uso ainda os de terceira geração.

Qual é a diferença entre os medicamentos de primeira e de segunda linha? A eficácia é diferente?
Os medicamentos de primeira linha são aqueles que são usados no momento em que o cidadão inicia o tratamento. Eles são associações de três medicamentos num só comprimido e vão permitir uma maior adesão ao tratamento. Vai também permitir ao cidadão sugerir melhor a toma destes medicamentos, são tomados, regra geral, duas vezes ao dia em horários que podem ser ajustados à vida diária do cidadão. Um bocadinho antes de sair de casa, depois de chegar à casa, num horário que não transtorne a vida destes cidadãos. E também porque os seus efeitos colaterais são mais leves. Quando passamos para um medicamento de segunda linha significa dizer que o cidadão já fez um tratamento de primeira linha e não tem uma resposta clínica ou virológica favorável. Na ausência de uma resposta clínica, imunológica ou virológica favorável, o cidadão é avaliado e passa para um esquema de segunda linha, onde às vezes não existem as co-formulações de três comprimidos num só. Há um maior número de comprimidos a tomar e às vezes não podem ser tomados várias vezes ao dia. E terão que ser tomados três vezes ao dia. Portanto, vai interferir muito mais na vida social do cidadão e os seus efeitos colaterais, assim como os exames necessários para fazer o monitoramento deste cidadão, que são mais diferenciados.

É fácil fazer os exames necessários em Angola? Havia, por exemplo, muitas queixas em relação aos exames de CD4. Continuam?
Os exames de CD-4 são feitos numa rede. As máquinas de exames de CD-4 têm uma capacidade diária de realizar entre 50 e 100 testes por dia. Se a unidade tem acompanhamento nos seus registos de 10 a 15 pacientes/dia não justifica ter uma unidade, porque é um subaproveitamento. Então, nós por conveniência e para uma maior gestão, existem unidades, que são as de referência, para onde duas, três ou quatro unidades são indicadas para fazerem os exames. É para justificar o volume de necessidades exigidas para estes aparelhos, com uma melhor gestão quer dos recursos materiais, físicos e humanos.

Os aparelhos de CD-4 não podem estar onde não temos energia eléctrica e água corrente. Portanto, estes cidadãos fazem recursos a estes aparelhos para começar a terapia ou para avaliar a resposta terapêutica. Existem outros exames que podem ser considerados de análise comparativa com os valores contabilizados de CD-4, que é o exame de hemograma. Um cidadão com um hemograma num determinado valor, ele pode ser comparado a um resultado de CD-4. E pode a partir daí decidir-se a conduta a ter com este cidadão. Não temos disponível a contagem da carga viral. Este exame estamos a oferecer só às crianças nascidas de mães seropositivas dentro do Programa do Corte de Transmissão Vertical e nos casos em que os exames para a detecção dos anti-corpos tenham resultados indeterminados. Ou nas mulheres grávidas que estão numa situação próxima do parto e tenham iniciado o programa de prevenção naquele momento. Portanto, precisamos de quantificar a carga viral para ver efectivamente o risco que esta criança corre de vir a nascer infectada por a mãe ter entrado no programa muito próximo já do período de parto. De resto, quer os exames de CD4 como os restantes considerados necessários para a avaliação dos doentes, disponíveis nas unidades de saúde ou em unidades de referência, onde o técnico do sector conhece como e de que forma deve ir o cidadão para fazer estes exames.

Estes exames são feitos em todas as unidades de referência no país?
Em quase todas, com excepção das unidades onde o volume de doentes acompanhados não justifica, onde não há garantias de água corrente e energia eléctrica. Os doentes são enviados para outras unidades.

No Reino Unido está para ser aprovado um novo medicamento por causa da resistência que o vírus apresenta em várias pessoas. Em Angola também existem muitas resistências aos remédios existentes?

Não posso afirmar que haja muitos casos, para isso preciso de um estudo, que está a ser efectuado num grupo de pacientes que já estão em tratamento há mais de três anos, para então identificarmos a existência de resistência. Com certeza, resistência existe porque a própria dinâmica da evolução da infecção do cidadão permite, quer esteja a tomar correctamente os medicamentos, cumprindo os horários e doses certas. A própria característica do mutante do vírus opera a partir de um determinado tempo uma certa resistência. A qualquer momento da vida do cidadão, mesmo tomando correctamente os medicamentos, o vírus vai desenvolver resistência aos medicamentos que o cidadão está a tomar. Daí que depois surge a necessidade de se avaliar periodicamente este cidadão e quando se detecta uma resposta não favorável, quer imunológica ou clínica, fazer-se então a mudança do esquema. Daí que se tem de trocar o esquema por um outro.

Quando é possível fazer-se a carga viral e a genotipagem, é possível identificar especificamente qual o antiretroviral a que o vírus é resistente. No nosso caso, onde ainda não temos a possibilidade de fazer isso a nível do país todo, e só em Luanda é que temos essa oferta toda de serviço, é feita basicamente uma avaliação clínica e imunológica, porque não conseguimos ainda fazer uma avaliação virulogica e a genotipagem. E fazemos uma mudança completa do esquema. Se tivéssemos a possibilidade de fazer a genotipagem iríamos mudar apenas o grupo do antiretroviral cujo vírus se mostra resistente. No nosso caso, como não temos esta possibilidade, fazemos uma mudança completa do esquema. Há um antiretroviral que consegue a partir de um determinado momento, mesmo depois de resistente, voltar a ser activo. Costumamos a manter este anti-retroviral e trocar outros.

Como é feito o esquema de tratamento?
A Lamivudina é um dos medicamentos que volta a ser activo mesmo depois de o vírus ser resistente. Este medicamento volta a ser activo e também dá eficácia a outros que forem associados ao novo esquema.

Vinte e tal anos depois de ter surgido o primeiro caso de SIDA, como é que avalia a qualidade de vida dos doentes?
Sou uma pessoa suspeita para falar disso, se calhar porque sou a gestora da SIDA no país. Das pessoas que conheço, algumas há mais de 15 anos infectadas com VIH antes de Angola começar a terapia com antiretrovirais, hoje estão no país e continuam bem, relativamente bem, com uma boa resposta terapêutica e com uma boa qualidade de vida. Acredito que quando se cumpre correctamente com as orientações médicas, tomando os medicamentos e adoptando um comportamento em função da condição que o cidadão vive, consegue-se viver saudável como qualquer outro cidadão não infectado com VIH. E há testemunho de pessoas cá no nosso país, que se não fosse o estigma, dariam a cara e falariam das suas próprias experiências


A infecção por VIH tornou-se uma doença de carácter crónico

Persiste a ideia de que os seropositivos estão a um passo da morte?
Isto já não existe. Eu acredito que hoje as pessoas infectadas, que estão numa unidade de saúde, sabem perfeitamente que estar infectado com o VIH não significa viver com o rótulo de estar à beira da morte, até porque todos nós vamos morrer. Conheço ou conheci muitas pessoas que têm estado a morrer e não estavam infectadas com VIH. Outras infectadas com VIH que continuam vivas. Portanto, o estar infectado com VIH não é sinónimo de morte, é preciso as pessoas viverem em função da sua condução e adoptarem um comportamento que lhes permita viver positivamente com a infecção. Há os diabéticos que têm de adoptar um comportamento positivamente com a diabetes, os hipertensos têm de adoptar uma conduta social e alimentar de forma a poder viver com essa sua doença crónica. A infecção por VIH tornou-se uma doença de carácter crónico, se o cidadão conseguir gerir positivamente esta sua infecção, ele poderá viver tantos anos quanto os outros não infectados por VIH.

Falemos desta qualidade de vida. O que é que um seropositivo pode fazer, comer e beber? E o que é que não pode?
Não existem restrições nenhumas. Infectado ou não, tem que se ter um estilo de vida que lhes permita viver o maior tempo possível. Este estilo de vida passa por uma alimentação equilibrada, sem excessos, porque tudo que é excesso faz mal a qualquer pessoa. Recomendamos normalmente ao cidadão infectado por VIH para não beber bebidas alcoólicas.

Não que ele não possa beber, mas porque relativamente a alguns medicamentos, o álcool tem alguma interferência. O mais importante para nós é que se o cidadão se excede na bebida, também vai ter alterações no seu comportamento, que é o momento certo de tomar o medicamento ou de numa relação sexual usar o preservativo. São determinadas condutas que o cidadão quando alcoolizado se transforma, porque ele não tem já consciência real do comportamento que está a ter. Portanto, ele pode fazer a vida n o r m a l d e n t r o dos padrões do que é recomendado a qualquer um. Fumar faz mal a qualquer um de nós, beber também, perder noite idem.

Já conseguiram aliviar a sobrecarga que o Hospital Esperança sofre?
Hoje estamos a conseguir uma melhor entrada, mas não ainda a desejável. Gostaríamos que o Hospital Esperança não recebesse mais casos novos, porque tem um volume de trabalho muito maior do que a capacidade de resposta, quer física como a de recursos humanos. Temos estado a conseguir isso com a transferência de cidadão para as suas áreas de proveniência, mas temos também consciência que o estigma social ainda é muito forte. Se vivo no Rangel e vou fazer as minhas consultas na Terra Nova, onde tem a possibilidade de haver um maior número de pessoas que conheço, por causa do poder de estigma e da discriminação prefiro ir onde menos pessoas me irão conhecer. E a própria localização do Hospital Esperança, dentro do Américo Boavida, faz com que se identifiquem menos essas pessoas. Vai para o Hospital Esperança e quando chega vai encontrar um grupo de pessoas com problemas semelhantes. Então, o cidadão sente-se num ambiente mais humanizado porque partilha directamente com outras pessoas, sem receio do estigma e dos seus medos.

A esperança é transmitida de pessoa em pessoa infectada com VIH e esta rede tem uma grande importância na abordagem da doença. Passa informações, sensibiliza os mais negativos em relação à infecção com VIH para adopção de um comportamento a favor de quem está infectado, com um comportamento saudável, não infectando outras pessoas e alertar as pessoas dos riscos que se correm das relações desprotegidas com parceiros que não conhecem. Tudo isso faz com que o Hospital Esperança tenha um maior número de utentes. A nossa estratégia tem sido ficar com os doentes daquela área, do Marçal, Rangel, mas as pessoas vêm do Cacuaco ou do Cazenga. Como a mensagem é passada, elas até já dizem que vivem naquela área, mesmo quem está na Ilha diz isso.

É mais porque o pessoal que lá está, mesmo a trabalhar, está sensibilizada e tem uma empatia para com essas pessoas. O estigma não existe no Hospital Esperança, todos são iguais e as pessoas vão passando a informação de que, quando vão a determinadas unidades, ainda existe esta discriminação e preconceito, por falta de conhecimento. Temos pessoas que sabem como o VIH se transmite, mas teoricamente ainda não estão seguros que é assim que se transmite. Que se eu abraçar, partilhar o mesmo prato ou computador, não corro nenhum risco de me infectar se o outro cidadão infectado usar os mesmos meios.

Esta falta de conhecimento faz com que o estigma ainda permaneça, à medida que o conhecimento se vai efectivando também vai diminuindo. Anos atrás você nem comigo que trabalho na SIDA aceitaria falar, tivemos algumas reacções de pessoas amigas que ficávamos algum tempo sem nos vermos: ‘quando nos encontrávamos, elas diziam onde trabalhavam, eu dizia que estou a trabalhar no Instituto da SIDA. Sentia que as pessoas se retraíam e ficavam durante algum tempo sem querer ter alguma reacção de proximidade, porque não sabiam como o VIH se transmite ou se previne. Infelizmente em alguns meios ainda prevalece isso e faz com que o membro desta família infectada não consiga partilhar informação com outras pessoas. É preciso que as pessoas saibam que o VIH não é uma doença contagiosa, é uma doença transmissível. E está bem identificada quais são as formas de transmissão, não é de contágio.

Fonte: http://www.opais.co.ao/pt/opais/?id=1657&det=17545

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